Na semana em que se assinala o dia internacional da prematuridade, não consigo deixar de viajar até ao dia 24 de dezembro de 2002. Estava internada na Maternidade Alfredo da Costa desde sexta feira, dia 13, e aguardava, pacientemente, que os gémeos se mantivessem na minha barriga por mais uns meses. De preferência até 16 de março, que era o dia previsto para o parto.

Enganei-me. As águas rebentaram à meia noite de uma noite de temporal e eles acabaram por ser desembrulhados às 03:12 e às 03:13 respetivamente com apenas 28 semanas de gestação. Não houve direito a assistir ao corte do cordão umbilical nem a fotografias com toca e cara de esforço. Não houve alívio, nem uns minutos de descanso. Houve quatro mãos treinadas para os colocar rapidamente, cada um, na sua incubadora e levarem-nos para uma sala de cuidados intensivos, à média luz e com sons de alarme constantes. O pai viu-os passar nas incubadoras e registou, no corredor, o que pareceu ser um “olá, estou aqui” de um deles que terá levantado o braço, dentro daquele aquário sem água.

Eu fui levada para uma sala pequena, cheia de equipamentos e com um enfermeiro que durante seis horas só me dizia, de vez em quando, que a Inês estava bem. Seis horas e nada do Guilherme.

Às 9 horas da manhã do dia 25 de dezembro estava a fugir de auxiliares para poder tomar um duche e livrar-me do cheiro do bloco operatório. Meia hora depois, vi-me amparada às paredes de um longo corredor que dava acesso à neonatologia. Primeiro os berços, depois as incubadoras e, mais ao fundo, as incubadoras com mais equipamento a lembrar um laboratório de um qualquer filme de ficção científica. O alvo do olhar atento de um conjunto de gente de bata, tocas coloridas e luvas era um “quase bebé” coberto de fios, máscara nos olhos, que estava num ninho feito de um tecido de algodão com cores suaves e que era algo que parecia não fazer parte deste ambiente tão científico. Entre números e algumas letras em código, consegui ler a placa afixada na incubadora: Guilherme 1.180 kg.



À frente, numa incubadora não muito longe, estava o que parecia um gato sem pelo. Uma quase bola enrolada em fios, com umas botas de lã cor de rosa, e outro ninho feito de tecido de algodão com a inscrição na placa: Inês 703 gr. Nem um quilo de açúcar e mais pequena do que uma Barbie.

Mas ambos a respirar. Vivos. E na altura era tudo o que interessava.

Este foi o primeiro de cerca de 60 dias de incubadoras, de avanços e de recuos, de horas de medo e de lágrimas de alegria. De aprendizagem constante, de termos novos, de seringas e de aspiradores. De imagens que sabemos que vão ficar na nossa memória para o resto da vida e de sons que, ainda hoje, quase 16 anos depois, fazem parte dos nossos piores pesadelos.

Vi-os nascerem as unhas, as sobrancelhas, os mamilos, as pestanas… vi-os a aprender a chuchar, a acalmarem-se um com o outro, a marcarem personalidades e sorrisos que só apareceram semanas depois de nascerem. Vi o que nós próprios crescemos com eles.


Embora tenha tido mais recuos do que a Inês, o Guilherme saiu da maternidade no final de fevereiro, com um fabuloso quilo e 950 gramas. A Inês saiu uma semana depois e mesmo assim, a tocar um quilo e 800 gr que era o peso mínimo para poder ter alta.

Na MAC foram dois meses de espera, de carinho entre fios, de sestas coladas ao peito, de perguntas sem resposta e de uma esperança sem medida pelos meus e pelos guerreiros que se iam juntando e saindo daquele espaço que nada tem a ver com o espaço de neonatologia dos dias de hoje.



A vida, o stress, a alimentação, os tratamentos, tudo junto pode levar a que se registem cada vez mais prematuros. A taxa de prematuridade em 2000 era de 5,9% e em 2015 já era de 8%.

Quando se fala de prematuros, viajamos logo até às incubadoras, mas um prematuro vai para além disso – as consultas nas várias especialidades passam a ser a rotina durante vários anos. Em causa está a grande possibilidade de complicações respiratórias e outras devido à imaturidade. Durante os primeiros dois anos é avaliado por duas idades: a corrigida e a cronológica. Se em abril tem quatro meses de vida, na verdade só se pode esperar que reaja como se fosse um bebé de um mês. Parecem detalhes, mas fazem toda a diferença. Para eles e para quem os ama todos os dias, a toda a hora. Para quem os conhece por dentro e por fora. Para quem os vê a “comporem-se” cá fora.

Um prematuro entra na nossa vida para a mudar. Para darmos importância ao ar que respiramos, ao que verdadeiramente importa. E para ajudar nessa mudança é que foi criada “O pai, a mãe e eu”, um grupo que pretende apoiar os pais e bebés prematuros depois da alta do hospital.

Para divulgar a prematuridade e as batalhas que todos os guerreiros têm de vencer, este sábado estaremos de roxo. Roxo porque é a cor da sensibilidade e transformação. Roxo na roupa, nalguns monumentos e quarteis de bombeiros que tantas vezes são a primeira ajuda. Em Lisboa, na estação de metro do Saldanha já está um painel com informação sobre a prematuridade. Cascais e Évora são algumas das cidades que aderiram à iniciativa e vão ter ter alguns espaços iluminados de roxo.