O luto de uma vida não cabe em 5 dias.

A perda de um filho é contranatura e é definida pela ciência psicológica como a perda mais dolorosa que o ser humano pode vivenciar.

O Código do Trabalho português e a Lei Geral do Trabalho preveem 5 dias de luto para a morte de um filho.


A Acreditar – associação de pais e amigos de crianças com cancro – lançou uma petição dirigida ao Presidente da Assembleia da República para alargar este período para 20 dias, para uma sociedade mais solidária e justa.



João de Bragança, pai da Madalena, presidente da Acreditar

“Nenhum luto é igual a outro luto, porque cada um de nós é diferente do outro: há a fé, o sentido que damos às coisas, a rede social ou familiar, as circunstâncias do drama. Mas do que estou certo é que cinco dias – o tempo que o Estado nos dá para regressarmos ao trabalho após a morte de um filho - será manifestamente pouco. Em cinco dias faz-se o imediato, o urgente, tantas vezes o burocraticamente inadiável. Damos uma camada de tinta à alma e ao corpo, não lhe damos novas fundações. Não nos preparamos para o futuro, por absoluta falta de tempo.”



O que diz a ciência psicológica

Por Sofia Gabriel e Mauro Paulino

Mind | Instituto de Psicologia Clínica e Forense


A dor eterna da perda de um filho

A perda contranatura de um filho, enquanto experiência traumática, tende a ser definida pela ciência psicológica como a perda mais dolorosa que qualquer ser humano pode vivenciar.

Inclusivamente, a morte de um filho é acompanhada de inúmeras outras perdas, como a perda das expectativas para o futuro, a perda dos momentos de proximidade emocional insubstituíveis e a perda do próprio sentido de identidade.

Não raras vezes, o sofrimento causado pela perda, descrito pelos pais como “a maior dor do mundo” provoca uma enorme sensação de vazio, dado que o papel parental é um dos mais importantes para a identidade do ser humano. Um dos principais conflitos internos vividos pelos pais é a tentativa de dar resposta à questão “quem sou eu agora?”, a qual vem acompanhada por outras dúvidas, como se continuam a ser reconhecidos como pais pela sociedade, em caso de perda de um filho único.

O vazio pelo qual os pais são invadidos é acompanhado por emoções como a zanga e, principalmente, a culpa. A zanga é resultado da sensação de injustiça provocada por uma perda tão violenta e dolorosa, associada a sentimentos de impotência, revolta e frustração. A sensação de culpa é causada pela crença de que os pais têm a capacidade de proteger incondicionalmente os filhos. Ainda que esta crença seja errada e os pensamentos de autorresponsabilização sejam irracionais, estes são gerados pela dor indescritível que é vivenciada pelos pais. Por sua vez, a culpa tem um impacto emocional destrutivo e tende a levar os pais a acreditar que falharam na tarefa de cuidar dos filhos.

A morte de um filho, enquanto perda primária, é ainda acompanha por inúmeras outras perdas, tais como a perda do suporte social, uma vez que as pessoas mais próximas tendem a afastar-se por não saber o que dizer, bem como a perda das dinâmicas conjugais anteriores – as designadas “perdas secundárias”. É vivida uma menor disponibilidade para a vida conjugal e também para o papel parental. Os irmãos em luto acentuam que não só perderam um irmão ou irmã, mas também os próprios pais que “nunca mais voltaram a ser os mesmos”.

Ainda assim, algumas relações entre marido e mulher e entre pais e filhos podem ser fortalecidas pelo sofrimento da perda, que aproxima a família no sentido da ajuda mútua. Este processo é possível com recurso à comunicação e à compreensão. Se por um lado, é importante comunicar o que estamos a sentir ao outro, é igualmente importante compreender que o luto do outro é diferente do nosso e essas diferenças devem ser respeitadas. Tome-se como exemplo que enquanto a mulher dialoga com mais frequência sobre a perda e as emoções vividas, o homem, na maioria das vezes, toma a decisão de se isolar e evitar o contacto com o sofrimento. É importante que ambos respeitem as necessidades um do outro e que encontrem estratégias, em conjunto, que permitam o apoio recíproco, sem desrespeitar as necessidades individuais de cada um.

É impossível regressar integralmente ao funcionamento anterior à perda, ou seja, os pais não voltam, de todo, a ser as pessoas do passado. Toda a identidade é reconstruída em função do sofrimento, significados e aprendizagens geradas pela experiência da perda. A perda torna-se um ponto de referência da história de vida dos pais, a qual exige que a sua autobiografia e o seu futuro sejam rescritos pelos pais e, também, pelos irmãos em luto.

Esta é a perda com um risco mais elevado de fragilidades para a saúde mental, como é exemplo o risco de perturbação do luto prolongado, depressão, perturbação do stress pós-traumático e ideação suicida; e para a saúde física, dado o risco de patologias cardíacas e cancro.

Estes riscos reforçam a necessidade de intervenção psicológica especializada. O psicólogo detém um papel preponderante para facilitar a identificação de estratégias e recursos para gerir o sofrimento, o encontrar de novos significados e o próprio envolvimento em rituais funcionais que permitem uma maior sensação de proximidade emocional e simbólica ao filho perdido.



O que diz a lei

Por Patrícia Dias Mendes, Jurista


Perspectiva legal

O Código do Trabalho português e a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas preveem um regime de falta justificada remunerada de 5 (cinco) dias consecutivos para as situações de morte de um filho (Luto Parental).

É este o actual regime de faltas justificadas legislado no ordenamento jurídico português. Notoriamente, trata-se de ditame legal insuficiente e violador dos mais elementares princípios que devem nortear o bem estar físico e emocional dos trabalhadores em casos de Luto Parental. Os estudos científicos de psicologia e disciplinas afins da saúde, apresentam evidências que comprovam esta clarividência.

5 dias consecutivos corresponde praticamente ao período necessário para o tratamento de formalidades pessoais e legais atinentes à morte de um ser-humano, não restando sequer um merecido período de pausa laboral para o exercício efectivo do Luto Parental.

O actual regime encontra-se em dissonância com os paradigmas de Políticas de Emprego e Sociais defendidas pelos Estados democraticamente organizados no Séc. XXI, bem como pelas organizações internacionais (veja-se o Pilar Europeu dos Direitos Sociais a título meramente exemplificativo) pugnando por melhores condições de trabalho, conciliação entre vida familiar e laboral, progresso social, apoio à família, entre outros aspectos em defesa dos legítimos interesses dos trabalhadores.

Para além disso, o tecido empresarial encontra-se cada vez mais flexível para acolher iniciativas que visem o bem estar dos trabalhadores. No contexto das políticas de responsabilidade social empresarial, as entidades empregadoras, muitas vezes, conferem aos seus trabalhadores mais do que 5 dias consecutivos de Luto Parental, o que, por si só, é demonstrativo de que existe um animus e uma enorme compreensão de alguns empregadores para esta dramática situação.

O Uso enquanto fonte de direito laboral, com enorme probabilidade demonstrará existirem práticas reiteradas – na relação empregador e trabalhador – reveladoras de que, sendo essa a intenção do trabalhador, existirá uma permissividade para que a falta em virtude de Luto Parental possa ter uma duração superior a 5 dias consecutivos. Assim sendo, deparamo-nos com um desfasamento entre o Uso e a Lei como fontes de direito laborais. A Lei deveria ir mais além e até superar os usos vigentes nesta matéria.

A nível europeu, constata-se existirem Estados cujas políticas laborais já acolhem esta linha de pensamento e, recentemente, tem vindo a assistir-se a um movimento de alterações legislativas com o intuito de aumentar o período de Luto Parental. Verifica-se que muitos países europeus estabelecem um regime mais adequado à posição fragilizada do trabalhador em situações de Luto Parental quando comparados com o português, como sejam, a Áustria, a Bélgica, a Croácia, a Dinamarca, a Eslovénia, a França, a Irlanda, os Países Baixos, a Suécia ou o Reino Unido. Neste âmbito, destacamos a Irlanda que atribui 20 (vinte) dias aos trabalhadores, o Reino Unido duas semanas e a Dinamarca até 26 (vinte e seis) semanas. O exercício de Direito Comparado igualmente nos leva a concluir que vigoram na Europa regimes mais consentâneos com aquele que deverá ser o regime mais adequado e justo para o trabalhador em casos de Luto Parental.

Assim, no plano jurídico, é também totalmente defensável e recomendável uma alteração legislativa que venha a adoptar um regime de Luto Parental de 20 (vinte) dias consecutivos.




A Petição lançada pela Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro

Vossa Excelência

Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República

A Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro (doravante “ACREDITAR”), NIPC 503571920 pessoa colectiva com estatuto de utilidade pública, com sede em Rua Prof. Lima Basto 73 1070-210 Lisboa e aqui representada por João Maria Lencastre de Bragança, na qualidade de Presidente da Comissão Directiva, vem, ao abrigo e para todos os efeitos legais decorrentes do Art.º 52.º da Constituição da República Portuguesa e dos Art.ºs 1.º e 2.º n.º 1 e 17.º da Lei 43/90, de 10 de Agosto e suas subsequentes alterações, apresentar e exercer o seu legítimo direito de petição pública (“Petição”) nos seguintes termos e condições:

- ENQUADRAMENTO –

Nenhum luto é igual a outro luto, porque cada um de nós é diferente do outro: há a fé, o sentido que damos às coisas, a rede social ou familiar, as circunstâncias do drama. Mas do que estou certo é que cinco dias – o tempo que o Estado nos dá para regressarmos ao trabalho após a morte de um filho - será manifestamente pouco. Em cinco dias faz-se o imediato, o urgente, tantas vezes o burocraticamente inadiável. Damos uma camada de tinta à alma e ao corpo, não lhe damos novas fundações. Não nos preparamos para o futuro, por absoluta falta de tempo.

Como pai que representa os Pais em nome dos quais esta petição é lançada, penso que é fundamental que se altere a legislação existente; o luto pela morte de um filho, cujos contornos estão referidos no texto da petição, não pode tornar-se num exercício repentista excessivamente condicionado pelo prazo. Há 20 anos tive cinco dias para regressar ao trabalho após a morte da minha filha de 7 anos. Serviram para pouco, para quase nada.

João de Bragança

1. A ACREDITAR é uma associação particular sem fins lucrativos, com estatuto de utilidade pública, constituída em 1994, contando já com uma longa história no acompanhamento de crianças e seus familiares no contexto de doenças do foro oncológico. (Vide Apresentação da Acreditar em Anexo I)

2. No âmbito da sua missão, constata-se de forma notória existir um efeito psicológico extremamente nefasto e praticamente irreversível, aquando do luto parental (“Luto Parental”). Os pais que perdem um filho ficam severamente fragilizados, emocionalmente destruídos e impossibilitados de assumir capazmente, num curto espaço de tempo, os seus deveres laborais.

(Vide Evidência científica a propósito do luto parental Anexo II)

3. O regime legal vigente é claramente insuficiente e violador dos mais elementares princípios que devem nortear o bem-estar físico e emocional dos trabalhadores em casos de Luto Parental.

Veja-se que o Código do Trabalho (Art.ºs 249.º e 251.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro e suas subsequentes alterações – “Código do Trabalho”) prevê um regime de falta justificada para as situações de Luto Parental, mas tão-só de 5 dias consecutivos. Igual regime decorre da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Art.º 134.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho e suas subsequentes alterações) – no seu todo “Regime Legal do Luto Parental”.

Os 5 dias consecutivos correspondem praticamente ao período necessário para o tratamento de formalidades atinentes à morte de um ser-humano, não restando sequer um merecido período de pausa laboral para o exercício efectivo do devastador Luto Parental.

O actual regime encontra-se em dissonância com os paradigmas de Políticas de Emprego e Sociais defendidas pelos Estados democraticamente organizados no Séc. XXI, bem como pelas organizações internacionais (veja-se o Pilar Europeu dos Direitos Sociais a título meramente exemplificativo) pugnando por melhores condições de trabalho, conciliação entre vida familiar e laboral, progresso social, apoio à família, entre outros aspectos em defesa dos legítimos interesses dos trabalhadores.

Para além disso, o tecido empresarial encontra-se cada vez mais flexível para acolher iniciativas que visem o bem-estar dos trabalhadores. No contexto das políticas de responsabilidade social empresarial, as entidades empregadoras, muitas vezes, conferem aos seus trabalhadores mais do que 5 dias consecutivos de Luto Parental, o que, por si só, é demonstrativo de que existe um animus e uma enorme compreensão de alguns empregadores para esta dramática situação.

O Uso enquanto fonte de direito laboral (Art.º 1.º do Código do Trabalho), com enorme probabilidade demonstrará existirem práticas reiteradas – na relação empregador e trabalhador – reveladoras de que, sendo essa a intenção do trabalhador, existirá uma permissividade para que a falta em virtude de Luto Parental possa ter uma duração superior a 5 dias consecutivos. Assim sendo, deparamo-nos com um desfasamento entre o Uso e a Lei como fontes de direito laborais. A Lei deveria ir mais além e até superar os usos vigentes nesta matéria.

A nível europeu, constata-se existirem Estados cujas políticas laborais já acolhem esta linha de pensamento e, recentemente, tem vindo a assistir-se a um movimento de alterações legislativas com o intuito de aumentar o período de Luto Parental (em algumas situações, alterações legislativas decorrentes do exercício do Direito de Petição – veja-se o caso do Reino Unido com a denominada Jack´s Law, na Dinamarca ou nos Países Baixos).

- PEDIDO -

Face a todo o exposto, a ACREDITAR, no exercício do seu Direito de Petição, vem requerer o seguinte:

i. Que sejam promovidas todas as necessárias iniciativas legislativas para a alteração do Regime Legal do Luto Parental, tendo em vista:

a) aumentar o número de dias de faltas justificadas, dos actuais 5 dias consecutivos para 20 dias consecutivos.

b) outros aspectos que a análise parlamentar aprofundada deste tema possa suscitar, em prol dos interesses dos trabalhadores vítimas de Luto Parental.

ii. Nos termos legais aplicáveis, solicitar, logo que possível, a audição dos representantes da ACREDITAR em sede da competente comissão parlamentar, os quais se farão acompanhar por advogado constituído para o efeito.

João de Bragança

(Presidente da Comissão Directiva da Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro)

Anexo I

Apresentação da Acreditar

A Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro, existe desde 1994 para enfrentar da melhor maneira as dinâmicas que o cancro pediátrico impõe, acompanhando as famílias desde o diagnostico e ao longo dos vários momentos da doença, mantendo uma relação directa e próxima.

O nosso apoio desdobra-se nos planos: emocional – para além de consultas de psicologia, proporcionamos às famílias o contacto com jovens e pais que já passaram pelo mesmo; logístico – como é o caso da estadia gratuita nas 3 Casas Acreditar situadas junto aos hospitais de referência do país; financeiro – para fazer face a despesas que podem ir desde a alimentação à compra de medicação, entre outras; escolar – da atribuição de Bolsas de Estudo ao apoio escolar por professores voluntários; material – a entrega, por exemplo, de próteses e cadeiras de rodas, sem nunca esquecer a importância dos momentos de lazer.

Investimos fortemente em momentos de partilha de experiências entre as crianças e jovens que vivem situações, em muito, semelhantes. Organizados em grupos, ainda doentes, ou já sobreviventes, procuram formas de se fortalecer e dar voz à oncologia pediátrica no sentido de minimizar as dificuldades sentidas na pele. A área da investigação científica e dos ensaios clínicos é também uma das nossas preocupações, promovendo e participando em iniciativas com outras entidades, nacionais e internacionais, responsáveis nesta área.

Transversalmente, a Acreditar desenvolve um importante trabalho de defesa e promoção dos direitos das crianças e jovens doentes e seus cuidadores, envolvendo-os sempre em cada acção. É neste âmbito que surge esta petição que visa conceder aos pais que perderam os seus filhos mais tempo para viverem o seu luto.

Com o apoio de mais de 600 voluntários, transparência, profissionalismo e, sobretudo, a experiência de quem já passou pelo mesmo, foram 1.520 as famílias que, das mais diversas formas, acompanhámos ao longo do ano de 2020.