Este é o documentário de que toda a gente anda a falar. O Dilema das Redes Sociais (The Social Dilemma, em inglês) é um original Netflix que, em poucos dias, se tornou no número 1 da plataforma de streaming.
Mas do que trata afinal este documentário e o qual é o dilema das redes sociais? Em 93 minutos, o Dilema das Redes Sociais debate o impacto destas plataformas nas nossas vidas e as suas consequências positivas e, sobretudo, negativas.
O documentário funciona como uma espécie de alerta para o que já está a acontecer atualmente como a polarização política de muitos países do mundo, mais solidão ou maior desinformação. Mas no Dilema das Redes Sociais também se deixam questões sobre o que pode acontecer num futuro imediato – guerras civis, por exemplo.
O documentário entrecorta-se entre partes ficcionadas em torno de uma família e da sua utilização das redes sociais e o recurso a depoimentos de técnicos e executivos que estiveram envolvidos na criação ou desenvolvimento de plataformas como o Facebook, Twitter, Instagram ou Google.
E é justamente esta segunda componente que torna o Dilema das Redes Sociais num grito de alerta, uma espécie de “ai, ai, ai que fizemos porcaria”.
Entre os especialistas ouvidos neste documentário estão um ex-presidente do Pinterest, Tim Kendall, um ex-engenheiro da Google e do Facebook, Justin Rosenstien, um ex-gestor de operações do Facebook, Sandy Parakilas, e um ex-especialista em ética de design da Google, Tristan Harris.
Este último chega mesmo a afirmar que “this is checkmate on Humanity”.
Até aos primeiros 10 minutos do documentário nada de novo. O ponto de partida do Dilema das Redes Sociais é que estas plataformas são negócios que dependem da venda de atenção dos utilizadores para financiarem as suas operações. Os meios de comunicação social não públicos, como a rádio e a televisão, há décadas que funcionam assim. Captam a atenção das audiências e vendem publicidade a anunciantes.
A ideia apresentada no documentário, de que as plataformas de social media não são grátis porque nós utilizadores trabalhamos para elas dando-lhas a nossa atenção, tem as suas raízes num distante trabalho de Dallas W. Smythe que, em 1977, disse o mesmo a propósito da relação entre audiências e meios de comunicação social.
Nem é nova a ideia de que os social media possuem muitíssimo mais informação sobre os seus utilizadores do que os meios de comunicação social alguma vez dispuseram sobre as suas audiências. O que se diz no documentário, de que Google, Facebook e companhia monitorizam todos os nossos passos online, não deve ser surpresa para ninguém. Já sabemos que não é por acaso que, depois de pesquisarmos viagens no Google somos bombardeados por anúncios de viagens de avião, hotéis e tudo o que estiver relacionado com as férias que queríamos ter. Estas plataformas conseguem saber mais de nós, pelas pesquisas que fazemos e pelos “likes” que damos, do que nós próprios.
Em O Dilema das Redes Sociais é também apresentada a ideia de que os social media têm contribuído para a polarização das sociedades. O crescimento de movimentos extremistas nas sociedades contemporâneas, ilustrado no documentário, é parcialmente devido ao facto de as redes sociais nos mostrarem apenas conteúdos que vão ao encontro das nossas convicções, deixando de fora dos nossos muais outras visões do mundo.
Na génese este modo de funcionamento das redes sociais, dar-nos apenas o que nos interessa, era entendido como muito positivo. Se um determinado utilizador gosta de bicicletas, então vamos mostrar-lhe tudo o que é trending topic sobre bicicletas. Esse utilizador não é incomodado com coisas que não lhe interessam.
O problema, que as redes sociais criaram, surge quando, em vez de bicicletas, se trata de ideologia, ideias políticas e notícias. Poder discutir ou ouvir discussões de ideias é fundamental para o fortalecimento das democracias. Mas a forma de funcionar da redes sociais é contrária a esta ideia.
Ao privilegiar dar-me informação que vai ao encontro do que eu penso, ao não me mostrar outros pontos de vista, as redes sociais têm um papel contrário àquele que os meios de comunicação social devem desempenhar nas sociedades democráticas – favorecer os debates livres e plurais.
A Democracia portuguesa deve muito a um célebre debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, então líderes do Partido Socialista e do Partido Comunista, respetivamente. Depois de responderem a perguntas dos jornalistas, o debate teve uma segunda parte em que os dois líderes colocaram livremente perguntas um ao outro. Nesta troca de perguntas ficou célebre a frase “Olhe que não, doutor, olhe que não” dita por Cunhal em resposta a um Soares que o acusava de querer instituir uma ditadura comunista em Portugal.
Hoje, na era do Dilema das Redes Sociais, este debate seria impensável ou não teria o impacto que aquele teve. Ao mostrar-nos apenas aquilo em que nos interessamos ou as coisas com as quais concordamos, as redes sociais não estão apenas a esconder-nos informação. Limitam a nossa visão do mundo ao atuar nos mecanismos mais básicos do funcionamento da mente humana. Neste caso, reforça-nos a ideia de que “todos pensam como eu”. Mesmo que eu pense coisas absurdas como que a terra é plana, vou sempre conseguir encontrar pessoas e muita informação que reforça o que eu já sei ou o que eu penso.
A nossa perceção sobre o mundo à nossa volta é afetada por vários vieses cognitivos, como o viés confirmatório (damos sempre mais importância à informação que vai ao encontro da nossa opinião) ou o efeito do falso consenso (sobrestimamos a quantidade de pessoas que pensam como nós), para citar apenas dois.
A lista de vieses cognitivos da Wikipédia apresenta 185 entradas (sim, a Wikipédia tem fiabilidade, mas isso fica para outra conversa).
Uma outra consequência das redes sociais, falada no documentário, é a elevada dependência que elas proporcionam, uma vez mais, ao atuarem nos mecanismos mais básicos de funcionamento da mente humana.
Grande parte das coisas que nos são apresentadas em O Dilema das Redes Sociais não são novas. Basta estar um pouco atento ao fenómeno para reconhecer grande parte das coisas que ali são discutidas.
O que é novo e assustador neste documentário é vermos ex-executivos de topo de empresas, como a Google, o Facebook ou Pinterest, admitirem que as consequências destas plataformas são contrárias aos motivos que os guiaram na criação das suas funcionalidades e que, de alguma forma, escapam ao controlo destas. É como se nos estivessem a dizer que criaram um navio espetacular, mas que agora anda à deriva e ninguém sabe muito bem como o levar a bom porto.
Apesar de todas as consequências negativas das redes sociais, há coisas positivas. Estarmos mais próximos dos nossos amigos ou, no caso do Google, conseguir encontrar informação num instante. Daqui o documentário chamar-se o Dilema das Redes Sociais.
Resta saber se estas consequências positivas vão compensar as negativas. A isto só o futuro pode dar resposta.