Raro é o português que não conhece “Os Maias”. Ou porque o absorveu da capa à contracapa, ou porque devorou os resumos para o teste de português, ou porque lhe passou os olhos no liceu e veio mais tarde a ler a obra com olhos de ler.
“Os Maias” são um clássico da literatura portuguesa e o Eça de Queirós um dos seus grandes mestres. Nascido em 1845, Eça foi o líder incontestado da Geração de 70, aquela geração inovadora que se opunha à “decadente” escrita ultrarromântica, segundo acreditavam, e procuravam a realidade concreta e a explicação lógica dos comportamentos, influenciados também pela estética naturalista de Zola. Nas célebres Conferências do Casino, Eça de Queirós afirmou que o realismo era “a crítica do homem”, era “a arte que nos pinta a nossos próprios olhos para conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenarmos o que houver de mau na sociedade.”
Este era o movimento literário do Realismo.
Em “Os Maias”, Eça de Queirós narra com detalhe a realidade. E mais: procura analisar e criticar a sociedade lisboeta da segunda metade do século XIX. Isso mesmo: a sociedade portuguesa do final do século XIX. “Os Maias” são também uma crónica de costumes que pretende denunciar a corrupção, a superficialidade, as mentalidades convencionais através do ângulo realista-naturalista e da maestria da sua escrita, do seu tão próprio uso da língua portuguesa. Tudo isto no contexto do século XIX e à luz da realidade portuguesa ou, até mais precisamente, lisboeta, deste mesmo século.
Tema de vários ensaios, imensas dissertações, inúmeras tertúlias e palestras, teses de mestrado e de doutoramento, “Os Maias” foram há dias, mais uma vez, assunto de uma palestra. Feita on-line, a partir da Universidade de Massachusetts, a palestrante e também doutoranda Vanusa Vera-Cruz Lima defendeu que a linguagem usada por Eça de Queirós, em “Os Maias” era racista.
Na apresentação da palestra, Vanusa Vera-Cruz Lima diz que “A perceção e a representação de pessoas negras n’Os Maias’ dependem de agressão, desumanização e degradação. O meu objetivo é analisar a linguagem usada por Eça de Queirós para se referir às pessoas negras, através das personagens, narração, discurso e escolha de palavras, entre outras abordagens estilísticas (…) O objetivo é trazer atenção e perceber o papel que a raça tem no trabalho de Eça ao analisar não só a linguagem racista prejudicial usada neste clássico”. Acrescenta também que “existe uma descomunal admiração pela brancura detetada na narrativa”.
Para ilustrar o seu ponto de vista, a palestrante apresentou exemplos retirados da obra: “crises de melancolia negra” de Pedro da Maia, os olhos de Maria Monforte parecem “negros de cólera”, “escada escura e feia”, “quartos alegres, forrados de papéis claros”. Entre muitos outros exemplos, a doutoranda refere que existem várias alusões em que a brancura está associada à beleza feminina.
Sabemos como Eça de Queirós combinou o genuíno, o pitoresco, os estrangeirismos, como deu novos sentidos ao vocabulário, como inovou a sintaxe, como combinou palavras de forma surpreendente e diferente, como deu importância à cor e à luz, como deixou a sua marca na literatura portuguesa e, sobretudo, como escreveu e sobre aquilo que escreveu, nos últimos anos do século XIX, para nos falar de uma família lisboeta, tendo como pano de fundo uma crónica social, cultural e até política para se conhecer, justamente, a sociedade daquela época.