O tráfico de seres humanos é um crime hediondo, é a forma contemporânea da escravatura. E, contudo, quem frequenta as redes sociais fica com a sensação de que a escravatura é uma coisa encerrada no passado, que nada disto existe hoje.


No Facebook, no Twitter ou no Quora é fácil encontrar acesas discussões sobre a escravatura no Período Colonial Europeu. Um facto, como a chegada de Cristóvão Colombo ao outro lado do Oceano Atlântico, é motivo para acesas discussões sobre o passado colonizador dos europeus.


Também nas ruas, uma ideia de combate à escravatura do passado tem vindo a ganhar forma. Seja pelo recente cancelamento da celebração de efemérides como o Dia de Colombo, nos Estados Unidos, argumentando que o conquistador “escravizou e massacrou" milhares de povos indígenas”, seja pelo derrube de estátuas porque “não se deve homenagear o responsável por um genocídio”.


Lamentavelmente, estas intensas manifestações de indignação sobre a escravatura do passado não têm o mais pálido reflexo em relação à escravatura que nos é contemporânea. Estima-se que no Período Colonial Europeu, entre os séculos XV e XIX, cerca de 13 milhões de pessoas foram capturadas e vendidas como escravas - o que é reprovável a todos os níveis.


Hoje cerca de 40,3 milhões de pessoas - mais de três vezes o número estimado para o comércio transatlântico de escravos entre os séculos XV e XIX - vivem sob alguma forma de escravatura, de acordo com os dados números publicados pela Organização Internacional do Trabalho da ONU (OIT) e a pela Fundação Walk Free.




A escravatura é e sempre foi repugnante. Fere a dignidade humana nas suas dimensões nucleares. Nunca deveria ter existido. Infelizmente, faz parte da História da Humanidade. Por isso, a leitura do passado, nomeadamente no que se refere à escravatura, deve ser abrangente e contextualizada.


O que é absolutamente incompreensível é que as novas formas de escravatura não gerem ondas de indignação, no mínimo, idênticas às que se verificam hoje em relação às do passado colonial europeu.


Afinal, hoje mais de 40 milhões de pessoas estão presas sob alguma forma de escravatura:

- 1 em cada 4 é criança.

- 71% são mulheres ou adolescentes do sexo feminino.


As modernas formas de escravatura são bem mais complexas do que as que foram abolidas pelo Marquês de Pombal em 1761 (sim, depois desta data continuou a haver portugueses envolvidos no comércio de escravos).


De acordo com a APAV, o tráfico de seres humanos hoje é um crime bastante complexo que implica diferentes ações, formas de violência e exploração. Como crime, é clandestino e pressupõe que alguma das seguintes condições se verifique:


- A pessoa não tem o controlo dos seus documentos de identificação ou de viagem;

- A pessoa teve indicações específicas sobre o que dizer quando estivesse perante um agente da autoridade;

- A pessoa foi recrutada para fazer um trabalho e depois é forçada a fazer outro;

- Está a ser retirada uma parte do ordenado à pessoa para pagar as despesas da viagem;

- A pessoa é forçada a práticas sexuais;

- A pessoa não tem liberdade para se deslocar como deseja;

- Caso tente escapar, a pessoa ou a sua família podem sofrer vinganças;

- A pessoa foi ameaçada que seria deportada ou sofreria outra consequência se procurasse ajuda das autoridades;

- A pessoa foi agredida ou privada de comida, água, sono, cuidados médicos ou outras necessidades básicas;

- A pessoa não pode, livremente, contactar amigos e familiares;

- A pessoa não pode livremente socializar com outras pessoas, nem pode livremente praticar a sua religião.


Sempre que se verifica alguma destas condições, a pessoa perde os seus direitos mais básicos e está cativa.


Este sábado, dia 2 de dezembro, assinala-se o Dia Internacional para a Abolição da Escravatura. Não faz sentido que continuemos a discutir o passado e a ignorar o presente.